Implante de eletrodos tem sucesso no tratamento de depressão refratáriaPor: Edson Amâncio |
No filme Johnny Mnemonic, o diretor Robert Longo vai ao limite da ficção científica ao colocar um chip de prodigiosa memória no cérebro do personagem principal, representado por Keanu Reeves. O espectador fica com a nítida sensação de que num futuro próximo a informação estará disponível, transportada de um lugar a outro no cérebro de ciborgues mensageiros. O chip pode transportar uma quantidade quase infinita de dados plugando um pino no orifício de um implante eletrônico colocado bem na região occipital. Ficção, claro. Mas estaremos tão distantes assim desse tipo de ousadia ficcional?
Recentemente, Helen Mayberg e Andrés Lozano, pesquisadores da University of Toronto, publicaram o resultado de uma neurocirurgia para tratar depressão refratária, que nos faz pensar na realidade de mãos dadas com a ficção. Há pouco mais de uma década seria fantasioso imaginar que o desenvolvimento tecnológico pudesse trazer uma revolução na medicina da magnitude como já podemos testemunhar. É possível que, até o final da década, situações como a vivida pelo ciborgue Johnny Mnemonic pareçam infantis, tal a velocidade, freqüência e audácia.
Os dois pesquisadores e sua equipe conseguiram dramática remissão dos sintomas da depressão em pacientes refratários a todas as modalidades de tratamento disponíveis até aquela data. Eletrodos de estimulação cerebral profunda (deep brain stimulation, DBS, em inglês) foram inicialmente implantados no cérebro de seis pacientes, numa área tão minúscula quanto um grão de ervilha. As bases científicas para essa operação vieram da análise de imagens por tomografia por emissão de pósitrons (PET). Os registros revelaram hipermetabolismo numa pequena área da porção anterior do giro cíngulo e uma notável redução do metabolismo cerebral no córtex pré-frontal dorsolateral. O desenvolvimento dessa técnica foi também estimulado pelo fato de que nos pacientes com depressão grave que se beneficiam do tratamento medicamentoso, as imagens de PET revelam uma homogeneização do metabolismo nas áreas referidas. É como se a ingestão de um antidepressivo com propriedades de repor determinados neurotransmissores como serotonina ou noradrenalina restabelecesse a função das áreas envolvidas resultando na melhora da depressão.
Por outro lado, alguns pacientes não conseguem o mesmo resultado; são portadores de depressão refratária. A maioria das pessoas que sofrem de depressão pode se beneficiar do tratamento medicamentoso associado ou não a outras opções terapêuticas como psicoterapia, eletroconvulsoterapia (ECT) ou estimulação magnética transcraniana (EMTC). Porém, cerca de 20% deles não conseguem resultados satisfatórios com nenhuma dessas alternativas isoladas ou associadas.
Há vários indícios de que a depressão não seja um transtorno localizado numa única região do encéfalo ou associada a um único neurotransmissor. No entanto, os verdadeiros mecanismos para explicar a real disfunção que ocorre no cérebro de pessoas com depressão não são completamente conhecidos. A hipótese mais aceita é que as causas sejam multifatoriais. Certamente vulnerabilidade genética, transtornos do desenvolvimento cerebral e fatores estressores estão entre as causas, cada um deles com uma fatia de responsabilidade na gênese do transtorno. As diferentes modalidades de tratamento para pacientes depressivos visam modulação neuronal no sistema límbico-cortical, onde diferentes modos de tratamento modulam alvos regionais específicos, resultando numa variedade de mudanças químicas que terminam por restabelecer o estado de humor normal.
A REGIÃO DA GÊNESE DA DEPRESSÃO
Estudos de neuroimagem funcional têm tido importante papel na caracterização dessas vias límbico-corticais. As pesquisas realizadas por Mayberg e seu grupo demonstraram consistente envolvimento de uma região específica do sistema límbico na gênese da depressão: uma pequena área conhecida como cíngulo subgenual, ou área 25 de Broca (Cg25). A hipótese aventada por Mayberg foi corroborada pelo fato de que há nítida redução da atividade metabólica nessa área quando pacientes com depressão obtêm melhora clínica ao serem tratados com antidepressivos. Esse fato sugere a importância da região na modulação negativa do humor. Antidepressivos que aumentam a disponibilidade de serotonina (ISRS) ou noradrenalina (ISRN), bem como outras variedades de antidepressivos e mesmo ECT e EMTC produzem esse tipo de alteração metabólica nessa área, resultando em alívio da depressão. A participação do cíngulo subgenual na vasta gama de sintomas que acompanham a depressão pode ser inferida também pelo fato de ela ter conexões com o tronco encefálico, hipotálamo e ínsula, regiões sabidamente envolvidas com distúrbios da regulação circadiana associados à depressão: sono, apetite, libido, alterações neuroendócrinas. Por outro lado, a região Cg25 recebe impulsos provenientes do córtex orbitofrontal, do córtex pré-frontal medial, e várias partes do córtex do giro cíngulo anterior e posterior, todos envolvidos com a manutenção do sistema nervoso autônomo e de homeostase, os quais influenciam vários aspectos do aprendizado, da memória, da libido, da motivação e recompensa – comportamentos alterados em depressivos.
AS IMAGENS DE RAIOS X mostram o eletrodo encefálico implantado. Ele é introduzido lentamente até
a região Cg25 e então conectado a um gerador externo que emite estímulos de alta freqüência.
Alguns conhecimentos nessa área foram descobertas casuais. A primeira cirurgia para implante de eletrodos foi realizada em pacientes com doença de Parkinson há mais de uma década. Em 1987, Alim-Louis Benabid, da Universidade de Grenoble, França, tratou com sucesso pessoas com doença de Parkinson com DBS. Desde então, centenas de pacientes se beneficiaram dessa técnica. Em 1997 um grupo de pesquisadores comandados por Yves Agid e Luc Mallet, do complexo hospitalar Pitié-Salpêtrière, em Paris, relatou alívio em sintomas de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) em dois pacientes submetidos à neuroestimulação de uma região conhecida por núcleo subtalâmico. Área que, uma vez estimulada, alivia os sintomas da doença de Parkinson como rigidez, tremor e acinesia. Os autores observaram que ambos os pacientes operados com estimulação do núcleo subtalâmico tiveram melhora nos sintomas da doença de Parkinson e se beneficiaram com redução dos sintomas de TOC que coincidentemente sofriam.
Dois anos depois dessa cirurgia, Boulos-Paul Bejjani, Phillippe Cornu e Yves Agid e colaboradores em Paris induziram depressão aguda numa paciente com doença de Parkinson ao tentar implantar DBS no núcleo subtalâmico. O eletrodo implantado avançou acidentalmente alguns milímetros e estimulou a substância negra adjacente desencadeando uma crise aguda de depressão. A paciente autorizou os pesquisadores a testarem o papel da estimulação na origem da súbita depressão que ela desenvolveu. O gerador de pulsos que emite alta freqüência para o eletrodo foi acionado seis vezes sem que a paciente soubesse se a estimulação era falsa ou verdadeira. Em todas as vezes que o gerador era ligado, ela desenvolvia uma crise aguda de depressão que era interrompida sempre que o gerador era desligado. E em todas as falsas estimulações a paciente não manifestou alteração do humor.
O que significava para ela estar ali, respondendo a perguntas de estranhos? Reagia como um autômato. Que resultado esperava da operação? Não lhe parecia uma idéia promissora? Que resultado! Vocês são mesmo persistentes! , exclamou com um traço de ironia num determinado momento. Acreditam mesmo que eu saia do fundo do poço onde estou mergulhada?
Havia décadas ela sofria de depressão, sem que nenhum dos tratamentos anteriormente utilizados conseguisse retirá-la do redemoinho. Nada pôde remover a nuvem negra sobre o seu ser, como ela se expressou minutos antes de ter o cérebro implantado por eletrodos de estimulação profunda.
Não se transformou exatamente num Johnny Mnemonic, mas sentiu alívio como nenhum dos tratamentos anteriormente propostos for a capaz. Tudo indica que a operação fora bem-sucedida. De agora em diante talvez possa alcançar o equilíbrio e a paz que procurou durante tantos anos.
CONCEITOS-CHAVE
– Cientistas desenvolveram uma neurocirurgia para tratar depressão refratária, por meio do implante de eletrodos de estimulação cerebral profunda.
– Os pesquisadores descobriram a área do cérebro envolvida na gênese da depressão: o cíngulo subgenual, ou Cg25.
– O eletrodo é inserido no local determinado por um software específico. O paciente então passa a viver com um gerador externo que estimula continuamente seu cérebro.
Deep brain stimulation for treatment-resistant depression. H. S. Mayberg, A. M. Lozano e outros, em Neuron, no 45, págs. 651-660, 2005.
Transient acute depression induced by high-frequency deep brain stimulation. B.-P. Bejjani, P. Damier, I. Arnulf, P. Cornu e outros, em The New England Journal of Medicine, 340, págs. 1476-1480, 1999.