‘Cuidar das pessoas faz com que elas vivam mais’ O olhar de uma médica sobre pacientes à beira da morte

22 de janeiro de 2024
Para a Medicina, um assunto proibido. Para a dra. Ana Claudia Arantes, a morte de pacientes é a premissa para falar de vida.

 A Dra. Ana Claudia Quintana Arantes sofreu ao perceber que a Medicina proibia falar de morte, mas resolveu usá-la para despertar a vida.

 

Quando a vida acabar, o que cada um de nós terá deixado pra trás?

Não parecia intencional que John Marcher, o protagonista do belo romance A Fera na Selva, de Henry James (The Beast in the Jungle, 1903), aguardasse a morte em cada minuto da sua existência. Mas foi o que aconteceu ao passar décadas esperando a chegada de um evento raro e grandioso que mudaria a vida dele – a tal fera na selva. De tão focado em aguardar o extraordinário, Marcher acaba sofrendo as consequências de não enxergar as possibilidades de desfrutar da própria vida.

 Diferentemente de Marcher, o jovem Daigo Kobayashi parece não esperar muita coisa da vida. Como as notas extraídas de seu violoncelo recém-comprado, os dias transcorrem com uma certa gravidade, como que musicando o vazio. Mas ao se permitir uma mudança, Kobayashi encontra uma renovação que enche seus dias de significado. Ele é o principal personagem do filme japonês A Partida (Departures, 2008), escolhido para estrear o projeto “Cineclube da Morte”, do Caixa Belas Artes. Até o fim do ano, o cinema paulistano vai exibir mensalmente um filme para estimular uma conversa sobre morte, essa certeza tão temida, com a plateia.
(C) 2008 DEPARTURES FILM PARTNER Kobayashi encontra uma renovação que enche seus dias de significado. Ele é o principal personagem do filme japonês A Partida (Departures, 2008).

(C) 2008 DEPARTURES FILM PARTNER
Kobayashi encontra uma renovação que enche seus dias de significado. Ele é o principal personagem do filme japonês A Partida (Departures, 2008).

O primeiro dia teve o bate-papo conduzido pela geriatra especialista em cuidados paliativos Ana Cláudia Quintana Arantes e pelo coach e especialista em Desenvolvimento Humano Tom Almeida, que utilizou sua experiência profissional para ajudar seu primo, Eduardo Alferes, a lidar com a própria morte. A sala ficou lotada na terça-feira da noite da exibição. E ao contrário do silêncio habitual reservado ao tema, muitas pessoas se sentiram encorajadas a falar sobre o assunto.

 “Só fomos usar a palavra ‘morte’ quando perguntei a ele ‘qual seu maior medo em relação à morte?’. Ele gostou de eu ter perguntado e isso abriu um canal de comunicação muito mais profundo e mais íntimo. Eu me tornei a pessoa com a qual ele podia falar qualquer coisa. E o medo dele era de, perto do fim, prolongarem o sofrimento dele colocando-o na UTI”, relata Almeida ao HuffPost Brasil.

Nos próximos meses, o Cineclube da Morte, que começou em setembro com a exibição de Invasões Bárbaras e segue com Mar Adentro (3 de outubro), O Quarto do Filho (7 de novembro) e Truman (12 de dezembro). As sessões começarão às 19h. Os ingressos custam R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia, para estudantes, correntistas do banco Caixa Econômica Federal, melhor idade), e podem ser adquiridos na bilheteria do Caixa Belas Artes ou pelo site www.caixabelasartes.com.br.

Falar de morte não é fácil em nossa cultura. Batidinhas na madeira, “cruz-credo” e sai-pra-lá são acompanhantes frequentes desse tópico. O paradoxal é que esse tabu acaba sufocando conversas, sonhos e planos que poderiam ocorrer enquanto se está vivo(a). “O que aprendi, conversando com meu primo, é que quanto mais a gente falava sobre morte, mais a gente falava de vida. Até eu morrer, estou vivendo. Quanto mais eu falo sobre morte, mais eu reavalio a qualidade da vida que estou levando”, analisa Almeida.

Essa reflexão sobre o tempo vivido tem sido crucial no tratamento dos pacientes da médica Arantes. No ano passado, ela publicou o livro A morte é um dia que vale a pena viver (Casa da Palavra), no qual discute o tempo e as perdas com leveza, relatando experiências próprias. Há mais de 15 anos ela se dedica a cuidar, nas suas palavras, “de pessoas que morrem”.

O que à primeira vista poderia parecer um trabalho muito conectado à tristeza e à perda se transformou em um reduto convidativo à vida e aos desejos. Ao levar cuidados e bem-estar a quem está tomado pelo medo da morte, Arantes enfatiza o tratamento e o olhar dados à pessoa, e não à doença. “Minha questão era ‘por que a Medicina se limita a cuidar do sofrimento do paciente? Por que ela só aceita a ação ilimitada em cima da doença? Por que ela não pode cuidar da pessoa de uma maneira completa? Se ocupar de servir aquele paciente para a vida dele, não para sua doença?'”, explica ao HuffPost Brasil.

Leia a entrevista completa:

HuffPost Brasil: Geralmente a Medicina e os médicos são associados a deuses por suas habilidades em trazer a vida e recuperar a saúde. Mas em seu trabalho você chama a atenção justamente para as limitações e para a morte. Como é isso para você?

Ana Claudia Arantes: Durante a formação em Medicina é muito frágil o nosso espaço de discussão sobre morte de pacientes. Você não pode falar sobre isso, não pode perguntar, não pode sofrer. Você tem que fingir que não aconteceu nada. Para você fingir que não aconteceu nada, você precisa levar o paciente para a UTI e fazer toda sorte de intervenções possíveis para que não apareça a possibilidade da morte dele. Quando a gente fala que o profissional de saúde é treinado para a vida, na verdade ele é treinado para liquidar doenças. Não se importa com a vida do paciente, mas sim, com a doença. Eu me dei conta de que, quando você trata a doença obstinadamente, você acaba com a vida da pessoa, com a vida em todas as suas dimensões, não só biológica, e priva essa pessoa de estar com a família dela, de entrar em contato com as coisas que ela dá valor, da possibilidade de escolher o que fazer com o tempo dela. Você pensa que a única escolha que ela tem é tratar a doença, mas muitas vezes isso não faz sentido porque você ela gasta o tempo cronológico fazendo quimioterapia, radioterapia, cirurgia, tomando remédios, fazendo exames. Se desperdiça esse tempo que poderia ser utilizado em uma percepção de vida muito melhor do que dentro de um hospital. Então, na Medicina a gente não tem espaço para discutir o que realmente faz sentido para curar ou controlar uma doença.

E o que você fez a partir dessa descoberta?

Quando me dei conta desse sofrimento todo, e não tive resposta, foi uma coisa desesperadora, porque não conseguia deixar de ver. Então cheguei a parar a faculdade [ela estudou na USP] por conta disso. Mas aí voltei porque acreditei que, se tivesse o meu CRM, eu poderia olhar para esse paciente do meu jeito, e não do jeito que a faculdade me impunha. Portanto, entender que a Medicina tem limite pra mim nunca foi difícil. Já estava em mim. A questão era “por que a Medicina se limita a cuidar do sofrimento do paciente? Por que ela só aceita a ação ilimitada em cima da doença? Por que ela não pode cuidar da pessoa de uma maneira completa? Se ocupar de servir aquele paciente para a vida dele, não para a doença dele?” Na residência de Geriatria, eu procurava os pacientes que estavam no final da vida e iam morrer no corredor e os levava para os meus leitos, onde eu conduzia o processo do cuidado amplificado. Era o cuidado paliativo na prática, com equipe de enfermagem, psicologia, serviço social, fisioterapia, nutrição, farmácia, terapia ocupacional, odontologia, todos trabalhando com esse olhar para a qualidade de vida do paciente. Surpreendentemente, as pessoas ficavam bem e até tinham alta. Objetivamente, cuidar das pessoas faz com que elas vivam mais. Elas vivem mais e melhor. Quem não quer isso?

Era difícil para os pacientes e pessoas ao redor deles falarem a palavra “morte” e lidarem com o fato?

É terrível. Quando você fala para a família “tem um risco grande de sua mãe falecer nos próximos dias” e pergunta qual a possibilidade de a morte ocorrer em casa e como se sente se ela morrer no hospital, ou o que a família gostaria de compartilhar com a mãe nesse momento, é bem difícil para eles. Mas eu faço essa pergunta para o paciente quando ele me dá essa abertura. E aí descubro que 99% das pessoas querem falar sobre isso. Basta fazer a pergunta “do que você tem medo?”.

E o que essas experiências revelaram para você?

Que essas pessoas que estão no fim da vida querem manter o espaço delas na vida dos familiares. Então, o seu pai quer te proteger, mesmo quando estiver morrendo. A filha me diz “dra. Ana, meu pai não sabe de nada, não conta nada pra ele”. Aí eu vou conversar com o pai e ele diz “não conta nada para minha filha, porque estou morrendo e preciso proteger aquela pequena, que não está preparada”. A família pensa que o paciente não sabe de nada e ele finge que não sabe de nada para proteger a família. O que permeia isso é uma atitude imatura de amorosidade, de achar que a pessoa não vai dar conta. Mas ela vai dar. Seu pai não vai conseguir te proteger no dia do velório dele. Então ele tem que te preparar para esse dia. Quando eu convido o paciente a ajudar a preparar a filha dele para isso, ele sai da posição de doente e assume a vida dele. Isso é muito poderoso. Pode fazer até com que ele viva mais.

Qual o propósito de usar filmes para falar sobre a morte?

A ideia é trazer essa discussão em um momento da vida em que você, tecnicamente, não está próximo da morte. Você está saudável, está bem. Você passa a olhar para a sua vida de uma forma mais amorosa, pensando em curti-la porque ela vai embora.

Por que nossa cultura costuma restringir o envelhecimento à ideia de morte, como se não tivéssemos mais desejo, ou razão para viver?

Penso que a gente no mundo ocidental tem uma capacidade limitada de compreensão do conteúdo da vida. A gente está preocupada só com o tempo da vida. Se você fica só na cronologia, no relógio, você se aproxima da morte. Mas no conteúdo você está absurdamente mais potente do que você era quando jovem. O que a gente está fazendo com nosso tempo agora? Isso que a gente está fazendo agora faz com que nossa potência de viver e de transformar o mundo seja grande? Ou estamos perdendo tempo, esperando ele passar?

O que você percebeu de desejos curiosos revelados por pacientes perante a morte?

A celebração. Eles [os pacientes] querem celebrar. Tive um paciente que queria comemorar 50 anos de casado. Com câncer avançado, ele falava para a esposa “olha, queria ter mais tempo com você, mas no tempo que eu tive, eu me casaria todos os dias com você”. Ele pediu champanhe e distribuiu para todo mundo. Teve um senhor que também fez aniversário antes de falecer – muitos fazem isso. Eles querem ter a oportunidade de ver a alegria nos olhos das pessoas à sua volta. Percebo que quando se está morrendo, não se quer pena ou medo nos olhos das pessoas. A gente quer a celebração pela nossa missão cumprida.

Muitas pessoas evitam velórios e enterros por não serem experiências agradáveis. Mas é aquele minuto que reservamos do nosso dia para homenagear uma pessoa que já não estará mais no nosso convívio…

Nós somos seres ritualísticos. A gente precisa dos rituais para estabelecer e separar um momento de outro da nossa vida. O velório, o funeral tem esse papel ritualístico de transição. De ser uma percepção de que a sua vida, que ficou, está mudando com a morte daquela pessoa. É um ritual de passagem onde a pessoa é entregue fisicamente e você passa a trabalhar com o seu vínculo simbólico com ela. O funeral é um processo curativo para esse momento. Quando você não vai, parece que ficou faltando alguma coisa. Se você tem um grande amigo que perdeu alguém que ele amava, a tua presença no funeral é uma presença inesquecível. Não precisa falar nada na hora. Uma troca de olhares que mostra que você está presente naquele momento é algo que consolida a amizade. Você deixa a mensagem “estou aqui por você”.

¹ – Não foi retirado do texto as datas de exibições dos filmes indicados, por acharmos que se fazia necessário para melhor compreensão do texto.

² –  Texto publicado em: 25/09/2017 06:53 -03 | Atualizado 26/09/2017 12:23 -03

 

Posted in Blog by Administradora - Nilde Soares

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